Você consegue fazer um passeio offline? Sete em cada dez já postam no caminho

Um estudo da Data.ai (2024) calcula que o brasileiro passa 4h 46min diários no smartphone. Separamos a conta e descobrimos que quase metade deste tempo acontece fora de casa, entre deslocamentos, filas e momentos que antes eram devaneio puro. Pesquisadores da USP acompanharam 1.000 voluntários em São Paulo: 72% desbloqueavam o celular antes mesmo de atravessar o portão do prédio; 41% usavam o aparelho caminhando; 9% chegaram a parar no meio da rua para terminar um vídeo curto.

Não é exclusividade nossa. Na Europa, o Observatório de Mobilidade Urbana registrou 34 colisões por milhão de habitantes causadas por pedestres distraídos com o telefone em 2023, alta de 17% em dois anos. Já em Tóquio, a prefeitura pintou faixas extras no chão só para lembrar que “andar olhando o celular” rende multa se houver acidente.

Sensores da consultoria Moment mostraram que, num deslocamento de 45 min, o usuário urbano toca no aparelho 11 vezes, raramente por mais de 25 segundos. É o mesmo reflexo do “toque fantasma”: 89% dos usuários sentem “vibrações” nos telefones que nunca aconteceram.

O “offline” que precisa entrar no feed

Aqui surge o contrassenso: saímos para viver longe das telas, mas só nos sentimos realmente “fora” depois de postar a prova digital. A Harris Poll revela que 68% dos adultos compartilham foto do passeio durante o passeio; 42% admitem pensar “se não postar, nem parece que fui”. O lema “pics or it didn’t happen” virou contrato social: o offline só vale quando volta online.

Entre turistas, isso é ainda mais intenso. Pesquisa da Expedia aponta que 71% publicam algo nas primeiras 24h de viagem; 27% interrompem a trilha, o museu ou o jantar para checar curtidas em tempo real. O resultado é um ciclo curioso: escapamos para relaxar, mas mantemos o pulso digital porque precisamos mostrar que relaxamos.

  Custo invisível

  • Atenção picotada – Alternar rua/tela a cada 12s derruba em 24% a memória de curto prazo do que se vê.
  • Acidentes banaisProntos-socorros dos EUA registraram 26.000 atendimentos entre 2019-2023 por tropeços com celular; 15% resultaram em fraturas.
  • Poluição cognitiva – Checar “quanto falta para o ônibus” sete vezes num trajeto gera picos de cortisol que somam meia hora diária de estresse leve.
  • Medo do vazio – O cérebro aguenta 40s de ociosidade antes de buscar estímulo (LSE, 2021). O telefone é o mais óbvio e interessante.
  • Prova social em tempo real – Mostrar o agora virou parte da experiência; sem registro, parece incompleto.

Há retorno?

A obrigação de registrar cada instante acabou convertendo a própria experiência em palco. Quando levantamos o celular para “guardar” a cena, nossa atenção se desloca daquilo que está vivo para a moldura luminosa que vai exibir o momento depois. O clique produz alívio imediato (“agora posso lembrar”), mas empobrece aquilo que se pretendia salvar: em vez de som, cheiro e temperatura, ficamos com um retângulo silencioso dentro de uma nuvem gigantesca onde batemos raras vezes.

A contrapartida ambiental e psíquica desse reflexo não cabe num comentário, ela se estende por quilômetros de cabos submarinos, data centers e desertos de lítio onde morre o que foi capturado em segundos. Se a promessa do digital era libertar a atenção para o essencial, estamos fazendo o percurso inverso: atravessamos florestas para fotografar árvores e passamos por amigos de rosto erguido apenas para avisar a outros, distantes, que estivemos ali.

Reverter essa lógica não exige ascetismo tecnofóbico. Começa por escolhas minúsculas, quase invisíveis: um almoço sem registro, um trajeto inteiro de cabeça erguida, um pôr do sol que fica só na retina. Cada microdesbloqueio evitado devolve horas de presença. E segundo acumulado vira memória sólida, não rolável.

É pouco? Talvez. Mas lembrar com o corpo inteiro, em vez de com os polegares, já é contrarrevolução suficiente num ecossistema que nos quer cronistas, jamais testemunhas. A internet sobreviverá sem mais um story; seu estado de espírito, possivelmente, também.

Da próxima vez que estender a mão para filmar o café, a praia ou o parque, pergunte: é registro ou reflexo? Talvez deixar o momento sem Wi-Fi seja a forma mais rara e valiosa — de curtida.

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